terça-feira, 30 de novembro de 2010

                "O Circo Azul" (1950), de Marc Chagall (1887-1985)

Something
Poeta de Meia Tigela

Mais que forma, invólucro,
mais que crosta, carne,
pele, toque, tato,
lacre, simulacro,
algo: que escapole,
que escorrega, escorre,
que transpassa, foge
à definição;
que se mostra aos olhos,
embora invisível.
Mais que coxas firmes,
que a curva dos seios,
a cheia das ancas,
o dentro da gruta,
um jeito: de andar,
de piscar os olhos,
de morder os lábios,
de sorrir com as mãos,
meneio sem par,
gênero de si.
Gesto ou sugestão
de; palavra ou menos:
voz cava, inaudita,
vagido, brahmido,
soluço contido,
grunhido, suspiro,
gemido melífluo;
linfa, sopro fluido,
inaçambarcável;
tudo ou nada disso.
Não figura e massa,
mas essência e alma.
Não só roupa rala,
antes polpa e halo.
Não rosto nem máscara,
sim, o íntimo xacra.
Não o entorno, o vago,
porém o imo, o âmago.
Casca, casco e tal,
sobrenada, o tao.
Ela emana um élan
manifesto além
do corpo em que está;
Ela exala vida,
seiva delicada
consubstanciada
ve- e revelada;
ubíqua, sutil,
evade-se, invade-me.
Ela surrealiza-me.
                               
                                                                 


Trindade

Carlos Vazconcelos

As três que conheço,
que não se conhecem ,
que moram bem longe
só uma aparece.
Aí de mim
se as três viessem
correndo assim...
Ai de mim!
Se tenho uma,
se penso outra
nem imagino onde
anda a terceira:
se sobe o morro
se desce a ladeira
se foi à praia
ou se vai à feira.
Cadê a primeira
que ao ter a segunda
beijei a terceira
e nem sequer sentir remorso?!
Mas como posso?
Se as três que conheço,
que não se conhecem,
que moram bem longe,
só uma aparece?
Ai de mim  se as três viessem...

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

                               OLHAR NÃO TIRA PEDAÇO

Por: Bernivaldo Carneiro
Geólogo/Sanitarista – Escritor.

Se fogueira forte é que clareia a noite, quem do ramo ignoraria uma legítima representante de Afrodite Calipigia cruzando à sua frente? Barack Obama e Nicolas Sarkozi não ignoram. Bastou alguém aquinhoada de um palpitante departamento de trás e outros predicados físicos, desfilar seus elogiáveis dotes anatômicos ao redor dos dois, para eles mudarem acintosamente o foco do encontro. Do tangível G8/G5 ao abstrato ponto G foi um mero piscar de olhos.

A propósito desta preferência (perdoe-me quem porventura a considera profana) explicam os filósofos: Quando o homem ainda andava de quatro era por trás que ele se aproximava da fêmea: nasceu aí a admiração por nádegas hemisféricas. Já montado sobre dois pés a abordagem se dava pela frente: originou-se o gosto por seios calidamente fartos. Deste modo, seríamos nós brasileiros tão pré-históricos assim? E o norte-americano (especialmente famoso pelo fascínio que nutre, em desfavor de bem-moldadas retaguardas femininas, por bustos avantajados) tão moderninho? Eu, que não sou de esconder minhas predileções nem tampouco nego o lado espiritualista nascido comigo na Jaguaretama do Dr. Bezerra de Menezes, o Allan Kardec brasileiro, confesso: eu devo ter encarnado em ambas as eras.

Mas de volta ao exposto e já de olho no que vem a seguir, eu pergunto: teria Obama e também Sarcozi, um pé no Brasil? Senão aqui nascidos, pelo menos com antecedentes próximos, na terrinha? Afinal, o primeiro, além de considerar Lula “O cara” possui um fenótipo que em nada desmerece um bom baiano ou um carioca do morro. Já, o segundo, que também é um confesso admirador de seu parceiro brasileiro, com aquela cara chupada e orelhas-de-rato-de-cana que lhes dão feições um tanto rústicas para os padrões europeus (até parece fruto do cruzamento do humorista Mr. Bean com o cantor Zé Ramalho), pode perfeitamente ser confundido com um piauiense, um cearense, um potiguar...

Enfim, um episódio que para mim teve outro mérito além de servir de assunto a esta crônica. Hoje, empunhando a espada da vitória, posso dizer que se foi o tempo em que um deslize do tipo, tirava-me o sono. Sabe como é que é: às vezes no fragor da hora, no calor da libido (a distração... digo a concentração) subtrai-nos a atenção que devemos ter para o risco que é dedicar a vista a uma bem-alinhavada bunda ou a uma farta-comissão de frente; quando nossa consorte (ou seria sem sorte?) está por perto. De forma que tão-logo tomei conhecimento do fato histórico objeto deste texto, já me prevenindo contra o despertar de ecos adormecidos, chamei Naná a um particular e decretei: “A menos que você me mostre fartas e consistentes imagens correndo o mundo, em que Michelle Obama e Carla Bruni, em represália à babosa admiração de seus respectivos, puxam-nos ostensivamente as orelhas em público (veja bem.... eu disse em público!), minhas inocentes olhadelas jamais me pesarão na consciência. Nunca mais me postarei cabisbaixo entregue ao mais velado dos pedidos de clemência. E digo mais, Naná, posso inclusive intuir o papo – não prescrevendo reservas morais, senão com forte acento de orgulho – que rolou entre as duas primeiras damas diante daquelas imagens:

– Viu aí Carla, como o meu crioulo é chegado?
– Que bênção, não Michelle!

– Pois não é mulher, em tempos cada dia, mais misóginos (o que há de gay e metro-sexual no Planeta é um espanto), possuir um marido que gosta do produto já é motivo de orgulho.

– Não esqueça, porém, Michelle, que ao contrário do meu camundonguinho, seu mulato deu uma desconversada quando percebeu a presença dos holofotes.

– Como assim?

– Deixa só eu recuperar a imagem... Pronto está aqui. Viu? Pretextando cavalheirismo àquela senhora que se dirige aos degraus, ele perdeu o foco. O meu não! Jamais desgrudou a vista.  Também essas brasileiras têm um pé-de-rabo de tirar o fôlego de qualquer um, não é mesmo, cara Michelle!

sexta-feira, 26 de novembro de 2010



Carta a um Amigo
Amigo, outra vez preciso de você. Recentemente um amigo viajou de nós. Muito amado, a sua ausência é dor coletiva. Para os que desfrutavam de sua amizade, ele era união e respeito. Peço-lhe, Amigo, que o acolha ao Seu lado. Será fácil identificá-lo entre os recentes moradores: ele é moreno, de poucos cabelos grisalhos, sorriso espaçoso, saudável, brincalhão e cheio de carisma. Conduz ternura no olhar e bondade nos gestos. Por certo, como sempre fez a vida toda, Você irá encontrá-lo dando conselhos, ajudando a todos os que necessitam de seus préstimos. Quando localizá-lo sei que gostará dele porque a dedicação à família, o amor ao trabalho, a lealdade em seus relacionamentos sociais são características que Você, Amigo, também cultiva. 

Eu o conheci no inicio da década de oitenta. A presença dele, silenciosa e iluminada, me presenteava uma consciência da contemplação de um belo pôr-de-sol. E nunca o esqueci. Recentemente li o livro Caminhos de Mandela, onde o biografado Nelson Mandela afirma: “Uma pessoa só se torna uma pessoa ao lado de outras pessoas”. E quantas pessoas se tornaram pessoas ao lado dele! Pessoas o procuravam, conduzidas pela ácida angústia, pelo desespero da solidão, na certeza de que ele era a solução de algum problema que elas não poderiam resolver. E ele resolvia. E resolvia humanamente. Eu testemunhei vários desses admiráveis momentos da sua vida afetuosa. Ele tinha consciência de que os seres humanos não somos independentes, mas interdependentes. Que ninguém é uma ilha. Quando uma pessoa pedia-lhe um favor, uma ajuda, uma presença humana ele sublimava essa interdependência com um desmedido sim, porque sabia que naquele momento o complemento que faltava na vida dessa pessoa era ele. Existe felicidade maior quando sofremos uma necessidade que não podemos resolver e outra pessoa a soluciona como se estivesse agindo para si mesmo? Eu contemplei variadas fraternidades dele em que a esperança de uma pessoa necessitada não saía decepcionada, porque ele sempre foi honesto com os princípios de fazer o bem.

Amigo, o mundo espiritual acaba de receber um hóspede ilustre. Todos irão amá-lo como foi amado entre nós, porque ele amou muito. E temos certeza absoluta que nessa nova morada ele não decepcionará.

Maçom exemplar durante décadas, a Loja Maçônica Liberdade e Justiça nº 16, a que ele pertencia, fez-lhe homenagens merecidas. A mais expressiva foi a criação da Comenda Francisco Carlos Mourão. Eu, na qualidade de afilhado maçônico dele, li Os Estatutos do Homem, do poeta Thiago de Mello, na certeza de que toda beleza poética desses Estatutos tem alinhamentos psicológicos com as atitudes em vida desse nosso amigo. É retrato moral dele o 1º Artigo que determina: “Fica decretado que agora vale a verdade, agora vale a vida, e de mãos dadas, marcharemos todos pela vida verdadeira”. Essa foi minha homenagem em nome da literatura, da poesia tão bem representada por esse imortal poeta amazonense.

Amigo Deus, outro pedido Lhe faço. Quando esse nosso amigo for reencarnado em uma nova missão de vida aqui na terra, envie-o novamente para a cidade de Crateús, onde ele viveu digna, honesta e compartilhadamente com seus semelhantes. Mesmo em outro corpo, mas com as mesmas virtudes de quem foi batizado com o nome de Francisco Carlos Mourão.

Na certeza de que esse pedido será atendido, agradeço de coração.

Silas Falcão
        


Branca

Por Raymundo Netto

Ah, se eu pudesse retirar o perfume de teus cabelos
Se teu dorso alvo repousasse em minhas mãos o dia inteiro
Se não houvesse essas horas que separam minha vida
Do teu calor, então, quem sabe eu faria mais poemas de amor.

Se ao som de afinado violão nós fizemos juras eternas
Se o pulso de meu coração corresse mais que tuas pernas
Se em épura eu descrevesse a bissetriz do teu ardor
Então eu mosaicaria, em poesia, tão eloquentes versos de amor.

Se eu pudesse te fazer promessas no escuro
Se pudesse sussurrar-te obscenos absurdos
Ah, se eu pudesse colher de teus lábios rubra flor
Eu a destilaria fria, fria, na insensatez das palavras de amor.

Se eu pudesse gravar em meus dedos a impressão dos teus, finos teus
Se eu pudesse no estrelar de teus olhos dizer-te adeus, um parto adeus
E se eu pudesse suportar sem gravidade o lancinante instante de furor
Nada mais me restaria a não ser a poesia tão poética do amor.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

                                                 
                                                         
                                                     MORRE MOACIR C. LOPES

Crônica de Pedro Salgueiro

Engano, apenas força de expressão. Na verdade apenas (apenas?) faleceu um dos maiores escritores que este sovina Estado produziu. Não morrerá quem deixou uma obra tão grande (em quantidade e qualidade) como Moacir Costa Lopes, que nasceu em Quixadá em 1927, teve uma infância penosa e aventuresca, uma juventude sofrida e viveu grande parte de sua vida no Rio de Janeiro.

Tive o prazer de encontrar com ele em duas ocasiões, no ruge-ruge de uma bienal de livros aqui em Fortaleza, mas antes já havia trocado com ele alguns e-mails referentes a uma entrevista que concederia pra a nossa revista Para Mamíferos. Desde o início se mostrou uma figura maravilhosa, solícita, humilde e disponível. Me foi apresentado pela amiga Susana Frutuoso, que estuda a obra dele.

Não sabíamos que ele já se encontrava doente. Quando convidado para a bienal pelo amigo Raymundo Netto, nada exigiu, apenas gentilmente sugeriu que com ele viesse um acompanhante, o editor e amigo Andrey do Amaral.

Proferiu palestra sobre seu fazer literário, sempre com muita simpatia e disposição. Depois participou, como ouvinte, de uma mesa que lançaria a revista com sua bela entrevista. Conversou com todos, distribuiu autógrafos e sorrisos. Prometeu entrar em contato quando viesse fazer uma visita ao seu querido Quixadá.

Do escritor, todos o sabíamos grande, mas o que mais me impressionou nele foi sua simplicidade, seu jeito manso e humilde de conversar com todos. O que mais me deixou feliz em conhecê-lo foi saber que pode, sim, um grande artista ser ao mesmo tempo um grande homem. Mesmo que muitos tentem, com suas tristes vidas, demonstrar que não.

Nos deixou um legado de mais de 20 livros, dentre eles o famoso A Ostra e o Vento (filmado por Walter Lima Jr.), o meu predileto O Passageiro da Nau Catarineta, seus contos reunidos em O Navio Morto e outras tentações do mar, e um delicioso Guia Prático de Criação Literária, que guardo de lembrança com seu autógrafo carinhoso.

Cabe a nós, conterrâneos que ele tanto amava, lembrarmos sempre de suas obras e de seu jeito manso.

Obrigado, mestre, pelos seus belos frutos!

 
 
                                                                  
              


O desfile

Por Silas Falcão
Do livro Por quem Somos?

Domingo. Missa na igreja lotada de rezas. Os olhares inundados de Deus crucifixam-se no padre celebrando a ato litúrgico.

De repente, uma colorida multidão de vozes cantantes interrompe a homilia da venda de Deus aos fiéis. O padre, mais petrificado e pálido que o tampo do mármore do altar-mor, para a missa. O coro de reprovação é mais forte que a imagem de Cristo na cruz. Alguns fiéis apressadamente benzem-se incrédulos. Outros arrancam rezas automatizadas, santificando a moral e o bom costume. Vários atribuem ao que vem a ação do capeta mata-Deus.

A igreja é coberta pelo véu do pecado, da blasfêmia, do ultraje à Virgem Maria.

É o apocalipse! Sentenciam os devotos por instinto.

Mas não é o que dizem esses puritanos de superfície enquanto na igreja. Nada de pecados. Ultraje à moralidade religiosa. Blasfêmia aos mandamentos divinos. Bem menos o apocalipse.

Os que condenam as evoluções da escola de samba soberbamente ornada de plumas, paetês e mulatas seminuas são os mesmos que a aplaudiram nos desfiles deste ultimo carnaval.

E agora ela desfila nas passarelas da igreja ao som ensurdecedor da bateria, agradecendo a Deus a conquista de mais um titulo de campeã.
                      
                                                  DEPRÊ

                                        Poeta de Meia Tigela

                                      Cá dentro e fora de mim
                                      Tormenta demência opróbrio
                                      Tivesse licor ou gim
                                      Mas o pior: estou sóbrio

                                      Dá-me o que enjeito ou desdenho
                                      Este mal-estar indômito
                                      Se penso no mundo tenho
                                      Engulhos ânsia de vômito

                                      Antes a luz apagasse
                                      Ante a vida, coisa errônea
                                      Dormisse talvez sonhasse
                                      Mas o pior: sofro insônia

 Lançamento do 8verbetes, poeta Carlos Nóbrega
Ideal Clube
4/11/2010
Poeta Carlos Nóbrega
A poesia voa 

                                                        
Fred  - o poeta- abraçando a poesia

Silas Falcão, Bulcão, Fred, Nóbrega,Vazconcelos, Poeta de Meia Tigela, Pedro Salgueiro 
                                            Poetas de quinta






                                      O grito de Pasolini

Por Manuel Soares Bulcão Neto
Ensaista


Com o advento da pecuária, e no processo de triagem dos animais que hoje constituem os nossos gados (caprino, ovino, bovino…), os homens sacrificavam os ariscos e mantinham os mansos e gregários. Konrad Lorenz, fundador da etologia, ao estudar este procedimento, constatou que as reses desta forma selecionadas conservavam, na idade adulta, muitos caracteres infantis, tanto fisionômicos (olhos grandes, crânio bulboso, maxilar mais retraído…) como afetivos e comportamentais. Ora - pensou o cientista -, na natureza, os filhotes de mamíferos são, em geral, mais dóceis, sociais e obedientes a comandos externos que os espécimes maduros. Até as crias de animais de hábitos solitários, como o jaguar, são sociais, visto que dependem da genitora e dos seus irmãos de ninhada. Concluiu, então, que o infantilismo genético-constitucional - i.e., decorrente de mutações nos genes reguladores do desenvolvimento que começa na fecundação - foi o critério utilizado pelos pecuaristas neolíticos. Em miúdos: o processo de domesticação se deu por meio da infantilização. Este fenômeno biológico, Lorenz denominou "neotenia".

O etólogo, entretanto, foi mais longe: sustentou que a neotenia também se dá de modo espontâneo, por seleção natural, consistindo numa das vias filogenéticas de socialização dos vertebrados. A propósito, são espécies altamente infantilizadas e gregárias: o cão selvagem, o macaco de Gibraltar (em tudo parecido com um babuíno jovem) e o bonobo (chimpanzé-anão).

E quanto a nós, Homo sapiens, o mais social dos animais, bicho "domesticado" pela cultura? Decerto que nosso neocórtex é produto de um desenvolvimento acelerado, não de um retardo. Algumas de nossas características, todavia, são claramente neotênicas. Com efeito, um feto desenvolvido de chimpanzé - Pan troglodites - assemelha-se bastante a um homem adulto: corpo pouco peludo, o semblante reto e uma caixa craniana grande relativamente à face. Demais, retemos das crianças o gosto por jogos e brincadeiras, a curiosidade exacerbada (que tantas vezes nos põe em perigo ou em situação de angústia), a capacidade de aprender…
Outra estrutura fenotípica que se manteve subdesenvolvida em nossa espécie é o sistema límbico: sede neuronal das emoções. Sim, é provável que o principal traço infantil que herdamos de nossos ancestrais consista naquele afeto comum a todos os mamíferos jovens: a dependência psíquica na relação com seus genitores, principalmente com a mãe. De fato, somente entre nós e nos bonobos a relação genitora-progênie dura a vida toda. - Nos anais da primatologia, há registros de chimpanzés-anões "adultos" que, não suportando o falecimento da mãe, em pouco tempo adoecem e morrem. (Complexo de Édipo?)

Já os humanos, ao contrário dos bonobos e graças a nossa capacidade ímpar de abstração, podemos preencher o buraco deixado pela morte ou falhas dos pais - estes são tão infantis e desamparados quanto os filhos - por equivalentes simbólicos: Deus-Pai, Mãe de Deus, Pátria-Mãe, a Razão maiúscula, as leis do (mater) ialismo histórico… em suma, qualquer coisa grande que explique nossa origem, aponte nosso destino e nos ajude a discernir o certo do errado.

Por fim, como me disse a psicanalista Maria Helena Cardoso, "a mãe é o maior órgão do corpo humano". Ora, quando a dor física é excruciante, o espírito se identifica cabalmente com a matéria: o corpo e, por conseguinte, com seu órgão mais importante. Foi o que ocorreu, presumo, com o escritor e cineasta Pier Paolo Pasolini no momento do seu assassinato. De acordo com o depoimento de Valdetti, suposta testemunha, enquanto era brutalmente espancado - por um bando neofascista ou garotos de programa - Pasolini, como uma criança órfã ou perdida, apenas gritava: "Mamma! Mamma!"

                                      Desperdício Público

Por Bernivaldo Carneiro
Geólogo-Sanitarista/ Escritor
                                                                                                                  
PESADOS os prós e os contras as súplicas do remorso recomendam-me jogar para escanteio o saudosismo, sempre inclinado ao silêncio. E sem ter a presunção e o poder da sentença, eu pergunto: ante as suas dívidas sociais (que não são poucas) nossa “Fortaleza Bela” comportaria uma Praça de Futebol a lhe sugar os cofres, se já contamos com o monumental Castelão?

Salvo melhor juízo a resposta é não! Ou, qual outra cidade brasileira similar ou superior à Fortaleza em termos de poder aquisitivo de seus povos e arrecadações de seus cofres, tem e mantém dois Templos Futebolísticos da envergadura de um Castelão e de um PV? As capitais, Paulista, Carioca e das Alterosas só possuem um Estádio Público. Porto Alegre e Recife não têm nenhum. A propósito desta, de olho na rivalidade que há entre nós, as comichões da curiosidade exigem-me indagar: o que muniu, com tanta substância e presteza, a alma de nossa Prefeita (a quem ajudei eleger duas vezes) para acatar tal obra? Para não sentir náuseas de mim mesmo eu diria que vejo nisso um implícito desejo de nos sublevar aos pernambucanos. Uma vez que os jogos de maior expressão aqui disputados (alguns das Sérias A, B, C e D do Brasileirão, Copa do Brasil e Campeonato Cearense) nem de longe ocupam por inteiro esses dois Estádios. E a inoperância, o ócio, o tempo morto destes significam manutenção a expensas do pobre Erário; enquanto que para pelejas de público reduzido temos, aqui na Região Metropolitana, os Estádios de nossos principais Times.

“Mas o PV será imprescindível à Copa de 2014” – dirão alguns. Não é bem assim, digo eu plasmado na ciência de que a maioria dos campos que serviram aos treinos em mundiais anteriores era de porte inferior a estes.

Por fim, sem contar que isentaria o município de despesas com salários e gratificações de cargos a serviço de sua operação e manutenção, somente os R$ 52 milhões da obra do PV dariam para construir 3.500 casas populares. Ou seja, acomodação para 14.000 almas, que somadas a quase outro tanto que poderia advir da negociação do terreno onde se assenta este Estádio; garantiriam moradia digna para cerca de dez, Granjeiro, Baixio, Pacujá etc. Além do mais se economizaria com entradas hospitalares, medicamentos e perdas de receita por absenteísmo (consequências naturais de condições insalubres do meio) bem como: menores seriam, a prostituição infantil e o número de crianças mendigando e assaltando nas ruas de nossa Capital.

Divulgado na Coluna Opinião do Diário do Nordeste de 15.08.2010.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Que qualidade de vida é essa?!

Por Bernivaldo Carneiro

Sabe quando, por uma questão de segundos, perde-se o desenrolar do fio da meada e um sentimento de culpa por não ter absorvido a íntegra da informação se apodera da gente? Foi o que aconteceu comigo um dia destes. Liguei o aparelho de TV exatamente quando o apresentador fechava a reportagem dizendo que uma cidade cearense, cujo nome eu prefiro omitir a me indispor com sua população, com os amigos e meus poucos leitores que ali nasceram; era o trigésimo melhor lugar do Brasil pra se viver. Digo, contudo, porque digo bem, que se trata da maior e mais próspera sede municipal da região norte deste Estado.

De pronto, cobrando-me a dedução do motivo por que a cidade em questão fora assim classificada e de olho no quanto eu sou avesso às altas temperaturas, outra coisa não me veio à mente senão o infernal calor que ali impera. E como quem rejeita tal classificação, logo me ocorreu mais de uma centena de sedes municipais onde o clima de meu agrado campeia livre, leve e solto. Quem sabe movido pelo bairrismo, primeiro passeei pelas principais cidades da Ibiapaba, da própria Meruoca e do Maciço do Baturité. Em seguida, dentre outras, também nordestinas, percorri mentalmente as não menos aprazíveis: Campina Grande, Gravatá e Garanhuns. Na sequência fui direto às Alterosas (Diamantina e Poços de Caldas foram as que encabeçaram a lista) e dali já saí revisitando outras maravilhas como Petrópolis, Teresópolis, Campos de Jordão... Por fim, dei um pulo até as serras gaúcha e catarinense: Gramado, Canela, Caxias do Sul, Garibaldi, São Joaquim...

Reconfortado pelo bem estar trazido pelas belíssimas imagens e pela agradável sensação térmica que minha visita mental acabava de me colocar na alma, ainda busquei, nos escondidos da memória, outro fator que pudesse eventualmente ter aquinhoado, com tamanha honraria, nossa Princ... Ih, quase me entrego!... Mas não o encontrei. Restou-me, portanto, firmar questão: é mesmo o mormaço dos 365 dias do ano (e bote mormaço nisso!) o termômetro de tal bondade. De modo que, mesmo sem torrar os neurônios, é lícito deduzir com toda a consciência dos anjos que dentre os vinte e nove lugares com classificação melhor que nossa urbe cabeça-chata, por certo se encontra: estufa, sauna seca, sauna a vapor...  

terça-feira, 16 de novembro de 2010


Exercícios de sensibilidade
ou O amor nos tempos da indelicadeza

Por Carlos Vazconcelos
Em tempos de indigesta violência (na tv, nas ruas, nos livros), de autores angustiados e penadas tão pessimistas, Silas Falcão publica o livro Por quem somos?, mostrando que prefere resistir pela dignidade, não cruzar fogos, depor armas, filiando-se aos preceitos de Gandhi. Dialoga com personalidades que imprimiram suas marcas indeléveis sobre a terra: o citado Gandhi, Charles Chaplin, Martin Luther King (seus prediletos, além do conterrâneo Milton Dias, é claro).
Com olhos perscrutadores, anda a pé pelas ruas de Fortaleza, fisgando situações, apropriando-se de material humanístico para compor suas crônicas, que são às vezes simples lampejos, insights, mas que demonstram a preocupação do cidadão. Este, na impossibilidade de curar mazelas sociais, reúne matéria poética e oferece ao cronista para que realize a transmutação lírica, a simbiose metafísica. Canta o mundo suavemente, às vezes com um pouco mais de furor, quando a atmosfera se torna menos respirável.
O livro reúne 63 exercícios de sensibilidade. São textos simples, desbastados de altos anseios estilísticos, mas abonados pelo teor humanitário. O cronista acredita no homem, na vida e no que virá. E tem uma característica, cultua a literatura como um ofício de virtude do ser humano. Para ele, a literatura é campo sagrado, onde só se deveriam plantar palavras amáveis. Se o mundo está vestido de nudez, é missão do escritor revesti-lo de magia e sonho, pensa. Corre o risco de descampar pelo lirismo extremo, que outros cantores chamam pieguice (até já me confidenciou este receio). No entanto, pode se afiançar nas palavras de Alberto Caeiro: Eu não tenho filosofia; tenho sentidos. Ou, erguer o braço e advertir, feito o poeta Mário Gomes, também citado no livro: Ninguém me despoetizará!
Com este Por quem somos?, Silas Falcão lançou a semente do seu estatuto da subjetividade, expressão que ele faz questão de realçar, espécie de carimbo da sua postura no mundo. Resta amadurecer o broto, ler mais, exercitar mais, torná-lo uma árvore de incontáveis frutos e continuar instaurando questionamentos: Por quem somos? Pela velhice dos sonhos? Ou pela consciência da paz, da alegria, das simples verdades da vida? Por quem somos? Pela ausência da literatura que nos livra da nossa própria estupidez? Ou pela inércia da justiça humana diante dos gritos dos inocentes, dos que necessitam do alvará de soltura social?
Seus próprios personagens, D. Romalina, o Diacordo, podem responder a questões tão sutis? Talvez isso caiba apenas ao leitor, pois não são lançadas respostas, apenas indagações, reflexões, provocações existenciais. Eis o desígnio dos livros: alargar discussões, estabelecer o diálogo, instigar desejos.
Em tempos tão escatológicos, vale a pena falar de flores? O autor acredita que sim, e oferece a deixa: Cada um sabe o coração que tem.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

                                
                                         Raymundo Netto


                                                 Bolero

A vida é redonda: um rondel, um rondó, um rondão...
Quase como sem fim, a vida vívida vive visceral e mente.
Quisera, completamente, fosse ela quadrada, cheia de arestas, cantos, ângulos retos e encontros...

Quisera fosse uma linha, única, indivisível, tangente, determinante, secante ou simplesmente uma linha de arraia a seguir, folha solta, ao vento pululante.
Quisera fosse de brincadeira, café-com-leite, carrinho na ladeira, macaca com pedra na risca de giz, ou uma casa abandonada, a meia-porta de madeira descansada na soleira infeliz.

Quisera não fosse nada, nem um único ponto, nem um átimo de tempo, nem uma lembrança ou um só abrigo.

Que não deixasse registro nenhum sobre a Terra.
Que não apontasse nada em nada.
Que fosse nem morte quanto vida.
Que não fosse se não seria, se não tão-só estivesse.
A vida é redonda: um rondel, um rondó, um rondão...

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

                                   Sertão de todos nós

            
                                            


Pedro Salgueiro
Jornal O POVO (10.11.2010)
 
Fui, sou e serei, para sempre, apenas um sertanejo exilado no litoral. Nada aqui me diz respeito, por aqui tudo é transitório, passageiro... Apenas espero a triste hora do alegre regresso.

Aos trinta, por puro esnobismo, comprei gaiola na última linha do oceano. Cuidadosamente de costas pro mar, pra que toda manhã pudesse desdenhar meu asco de pequeno-burguês físico mas nunca mental. De lá pra cá andejo em linha reta rumo aos Inhamuns.

Aos quarenta atravessei a fronteira imaginária da 13 de Maio, linha simbólica de todas as Fortalezas. Em sentido contrário aos tolos, tontos suburbanos mentais.
Meu voo é de avoante ferida, com tiro de chumbo nas c’roas do rio Acaraú, nas quebradas do Riacho do Gado, por trás da Barra da Oiticica, de lado da Caconha de todos os loucos.

Pois em cada quarto de qualquer família pulula um doidinho de testa quadrada, encarnado de sangue da abelha Capuchu... Enquanto o Diabo, rosianamente, redemoinha no terreiro.

Gracianamente seco, corre meu sangue pelas veredas pedreguentas do Carão. Do outro braço, o direito, o sangue das tristes Oliveiras, dos tontos bons da Curimatã, do Jumentão da Maravilha.

Apenas quando se estende pelas estradas do Canindé, as palavras vão escasseando, até quase sumirem da voz. Água evaporando na língua morna de todos os nós. De marejado apenas os olhos, único órgão úmido do sertanejo que volta.

Sou filho, pelos dois lados, da primeira geração que saiu do campo, que desbravou a cidadezinha no pé da Serra das Matas. Não sou filho de matuto urbano, mas de matuto dos matos, de pés rachados na urina do lajedo quente.

Meu pássaro é o Camiranga de beira de caminho, comedor de Cassaco e Tejubina de grota.

Meu ouvido é de rabeca triste cantada por cego em final de feira.

Minha casinha é branca, de parede grossa, quase na sombra de uma Jurema imaginária.

Mesmo longe de nosso chão, formamos confrarias de quase surdos-mudos.

Apenas olhamos para o nascente a perscrutar chuva.

E quando ela vier, é certo que vem, virá sempre, um dia.

Já nos encontrará de mãos trêmulas e mala pronta.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

                                 Sinal Vermelho
                    Homenagem ao José Alcides Pinto


  Da janela do meu carro avisto o velho poeta atravessando a rua. Meus olhos vão seguindo aquele vulto, meio capiongo, já passos lentos. Vai conduzindo sua solidão ou por ela vai seduzido. A solidão do poeta é povoada por seres deste e doutros mundos. Olho da janela do meu carro. O poeta não precisa de automóvel, é alado, e diáfano, por isso a multidão nem desconfia que ele existe. Ele mesmo se pergunta, ou aos deuses, quem sou eu?, mas não obtém resposta. Aliás, respostas não são o forte dos poetas, que se contentam com as dúvidas. Para onde vai o turbilhão? Sem saber, os carros param para o poeta passar, a rua para, o vento dispara uma lufada de gratidão. O semáforo é quem decide: vida ou morte. As calçadas esquivam-se dos pedestres.
O velho poeta segue repletamente vazio. Seus labirintos lhe bastam, o que não olha é o que vê. O velho poeta vai sobraçando papéis avulsos e a lânguida certeza de que a morte é conspiração. Uma certeza íntima, pouco lembrada, que resulta em mistério, contravenção ou metafísica.
Sou a plateia do velho poeta. Vejo-o transitar pelos meandros da babilônia e penso: a cidade inteira é menor do que o velho poeta.
José Alcides Pinto (1923-2008)
Este texto foi entregue ao JAP em agosto de 2007.



                                         PINACOTECA

         

Frederico Régis

Os muros da cidade
Exibem novos artistas

Dalís
Daqui
Picassos quaisquer
No chapisco e na cal

Anônimos
Que humildes assinam o rodapé
E deixam o telefone de contato
 

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

                                                   

                                          Poetas e livros
Por Silas Falcão

Menções honrosas no I Prêmio Nacional de Literatura/2009- Poesia, O sangue da terra, de Mauricio Cals; Lâmina, de José Carlos Mendes Brandão e 8verbetes, de Carlos Nóbrega foram os livros editados pela Secult e lançados na noite de 3 de novembro, no Ideal Clube. Carlos Roberto Vazconcelos, Raymundo Netto, Poeta de Meia Tigela, Silas Falcão, Manuel Soares Bulcão, Pedro Salgueiro são os Poetas de Quinta, inicialmente presentes para homenagear outro Poeta de Quinta – Carlos Nóbrega. Ou Nó-Brega, neologismo jocoso de Pedro Salgueiro. A primeira leitura de um livro é a sensorial. O leitor analisa as cores, imagens e tateia texturas. Percorre as páginas num folhear instantâneo criando uma breve onda de vento. Vira e revira o livro na pretensão de antever o conteúdo. A capa do 8verbetes agrada pela simplicidade: vinho salpicado de preto, fontes das letras falhadas e o 8 diagramado com frestas não desconcerta a simbologia de infinito. O Poeta patativa alto, fácil e diferente. A poesia dele atrai pela técnica e inventividade, permitindo uma leitura arejada, fluente, cristalina que se encrava no pensamento do leitor abrindo outros canais de percepções.  Em O quanto sou, seu sexto livro, Nóbrega sublima a estrutura poética no poema

 

O ateu
acredita piamente
que o céu é oco

Do 8verbetes cito, como um dos exemplos de domínio estilístico,

Móvel reformado

 A minha cama de solteiro
é a minha cama de casal
quando eu sonho contigo.

O Poeta Calos Nóbrega é um talentoso endereço literário.

Noite saborosa.

Uísques são disputados aos gritos chamativos de Ei, garçom. As doses servidas são curtas para as extensas sedes do Bulcão, Vazconcelos, Pedro Salgueiro, Silas Falcão e o Poeta de Meia Tigela. A fome de amenizar o leve amargo do uísque vigiava a passagem da garçonete com uma bandeja de salgadinhos. As mãos de redes dos Poetas de Quinta arrastavam pastéis e empadas. Em outro momento a entrevistadora do programa Papo Literário, Mônica Silveira, aproxima-se perguntando aos Poetas de Quinta, sentados em circulo: Quem viu o Nóbrega?  Observador ininterrupto, Pedro Salgueiro adverte: “Vai ser difícil encontrar o Nóbrega dentro dessa pequena multidão”, e mede com o braço esquerdo uma altura de um metro e poucos centímetros. Em seguida, os Poetas de Quinta gravaram, para o Papo Literário, o quadro Livro de Cabeceira, compartilhando paladares literários.

Sempre atrasado, mas nem sempre ausente, o Frederico Régis, outro Poeta de Quinta, chega com um espaçoso sorriso despertando em Pedro Salgueiro o anúncio desse aviso: “O banheiro é lá na frente”.

E como o bairro Benfica é habitado de nobrezas, “fechamos” a noite no Assis, Bar onde os Poetas de Quinta se encontram todas as quintas.
 
Salve, salve, Poeta Carlos Nóbrega!