quarta-feira, 26 de outubro de 2011

                                  
                         Navegando contra a corrente



Pedro Salgueiro para o jornal O POVO.


Em termos de tecnologia eu estou sempre, no mínimo, dez anos atrasado. De início reajo da pior maneira possível às mudanças: acho uma droga qualquer aparelho novo que mude algum uso ou costume meu. Sou um sujeito reacionário por natureza, afeito à inércia, e defensor incansável “do mesmo sempre”.

Só mudo à força!

Passa um tempo, e vendo os amigos se deliciarem com um moderno celular ou um “interessante” modo de fazer as coisas, com o novíssimo programa de computador, com um novo... acabo tendo uma curiosidadezinha assim, digamos, sem vergonha. Vou aceitando aos poucos usar as tais novas máquina, a utilizar os inovadores métodos.

Mas reclamando sempre, fazendo cara feia e usando e abusando da má-vontade: uso, pois, à força.

Nunca aprendi a gravar uma fita-cassete, a usar corretamente um aparelho de som. Mesmo depois de anos não sei ainda o botão certo para rodar ou parar o CD, “aumentar o volume é onde mesmo?”, e muito menos ligar e desligar fios na tomada. E botar créditos em celulares é tarefa quase impossível.
Sou um zero à esquerda.

Por conta disso, meus aparelhos são sempre aposentados novíssimos: com quase nenhum uso (e cada vez mais rapidamente) são substituídos por outros com as propaladas novas tecnologias. Não existe mais agulha para o meu velho som Gradiente (mas guardo com carinho alguns discos queridos), junto numa caixa de sapatos as mil fitas Basf e seus usos, modos e atalhos tão lentamente (e com que dificuldades, meu Deus!) aprendidos.

O computador eu utilizo como máquina de datilografar com mais recursos, e mesmo assim com a saudável ajuda de minha filha de 8 anos. Que não raro balança a cabeçinha com mais uma pergunta de socorro.

— Ô pai, você não aprende nunca!?

Não aprendo nem guardo esperanças de aprender. Tenho certeza que serei sempre um sujeito tecnologicamente (mas não somente) atrasado. Irremediavelmente superado.

terça-feira, 25 de outubro de 2011


                                            
        
                                             Outra coisa

Ele, observando a pá veloz do coveiro:
– Quem será enterrado?
– Ninguém.  Este amigo me avisou que está vivo.

Por Silas Falcão
                         

quarta-feira, 19 de outubro de 2011




                                     Ao espírito do tempo

Carlos A. Nóbrega

Que bom te ter de volta, Espírito do Tempo
Admiro-te porque pulsas no pulso erguido de qualquer um
Tu que vens dar nomes próprios às Primaveras
tu que rasga os dinheiros e a certeza
tu que desvia os rumos e a mim mesmo
tu que é estranho brutal e destrutivo
tu que jogamos pedras nos tronos, e incendeiam as catedrais
tu que nutris de medo a ereção covarde dos canhões
            Deixai perplexo o olhar irônico dos fardados
tu que vens sempre sem ser chamado
tu que te acende
quando se pensa que a vida humana é só patinhar nas cinzas do passado
           Revira as tripas dos mandões
ó Espírito Irresponsável Que Só Sente
Sede bem vindo
porque tu me exproprias do meu mau conforto
Eu te saúdo
porque extirpas de mim os dias mal acostumados
            a dizer que sim
A ti empresto o meu suor e minhas palavras de desordem
A ti, ó instintiva, inevitável ecdise da nossa espécie.

sábado, 15 de outubro de 2011


                                          ENVELHERCER

Pedro Salgueiro para O Povo

Deus (ou a natureza, ou seja lá no/em que ou quem acreditemos) nos dá a sabedoria de irmos vivendo sem pensar muito no nosso inevitável envelhecimento. Na verdade não nos preparamos para essa complicada fase da vida (hoje tão eufemisticamente nomeada). Vamos indo rio abaixo (ou acima, quem sabe?) meio que ao sabor da corrente e do vento. Às vezes de canoa, outras no duro nado de peito. Mas verdade que dia menos noite nos deparamos com a “idade” chegando: uma dorzinha nas costas, um porre que demora mais do que de costume a passar, aquela torção de tornozelo que se curava por si dois dias depois do joguinho de futebol e que agora nos maltrata por meses.

Os males físicos são os mais fáceis de detectar, pois inevitavelmente nos procurarão em nossa própria casa; os mentais, não, são mais discretos e nos cercam de longe, infiltra-se em nossos cotidianos sem deixar pegadas. Vão sorrateiramente invadindo e tomando conta da nossa alma.

Um amigo me segreda que morre de medo de envelhecer como seu pai, que foi ficando com o passar do tempo extremamente “gabola”, mudando sua personalidade a tal ponto que causava incômodo nos familiares e amigos: vivia a se “pabular”, que era o melhor escritor de sua geração, que só ele sabia fazer crítica literária, que criar filhos era com ele mesmo etc. e tal. Havia se tornado, aos poucos, um senil “Super Homem” do auto-elogio gratuito, envergonhando os mais próximos, afastando-os de sua convivência.

Já um colega de trabalho, corre célere rumo ao túmulo com uma raiva imensa dos mais jovens, tempo nenhum presta que não o dele, lá para trás. Os jovens, esses são uns irresponsáveis, superficiais e complicados. Nenhum presta, se um novato e mais apessoado funcionário vem trabalha em seu mesmo setor logo se tornará seu inimigo mortal. Que não sabe redigir uma petição, que pensa que é só te rum sorriso nos lábios, no meu tampo...

Mas há quem procure envelhecer com inteligência e bom humor, com a altivez casada com a humildade. Sem essa quase inevitável inveja que sente dos que vêm depois de sua geração com toda força e viço.

Uma ciência complicada, essa do envelhecer com dignidade. E que tribo escassa essa dos que sabem das minguadas vantagens e a elas dê um peso justo, dos que também consigam mensurar as inúmeras desvantagens e, com arte, minimizá-las com resignação e alegria (ou até mesmo ironia)... Dos que vêem os mais jovens menos como um inimigo e mais como os aliados que ficarão, sim, com os “louros” mas principalmente com a inglória tarefa de levar nas costa este nosso pesado, velho e complicado mundo.   

           Sob o Prisma da Enganação
                 (Momento V de SÍNTESE DE UM PENSAMENTO)


Apresentação de Bernivaldo Carneiro


“Bons dias! Hão de reconhecer que sou bem-criado. Podia entrar aqui, chapéu à banda, e ir logo dizendo o que me parecesse; depois ia-me embora, para voltar na outra semana. Mas, não senhor; chego à porta, e o meu primeiro cuidado é dar-lhe os bons dias” — bem, assim iniciou Machado o livro: Bons Dias & Notas Semanais.

Eu, por minha vez, não direi dos outros “Bons dias” de Francisco Lima Freitas ao ir ter comigo em meu trabalho. Senão do seu, “Bons dias” de uma modorrenta e abafada manhã do último mês de março; ocasião em que ele, de inopino encheu-me de regozijo e orgulho. Não escondo que eu me admitia figurar em sua estima, mas daí a imaginar ser um dia intimado a lhe prefaciar um livro ia uma grande distância. Afinal, inobstante remonte há doze anos a minha ousadia de enveredar pela escrita, até um triênio atrás eu sequer vislumbrava a possibilidade de vir a ser acolhido no ninho literário cearense. É que, por índole, acanhado e ainda exercendo uma profissão voltada às ciências exatas, a minha rotina me afastava naturalmente de tal gueto.

Mas o Presidente tem a faculdade de me varrer os escrúpulos da timidez e, independentemente da “diplomática pressão” antes anunciada, estou eu aqui de alvedrio.

O escritor e jornalista Lima Freitas, mais que um intelectual que goza do respeito e reconhecimento do meio cultural alencarino, é antes de tudo um caráter extremamente modesto e uma voz de prontidão contra as injustiças do mundo. Um eloquente defensor dos princípios que defende e um contumaz crítico das imprecações que condena. E o que é melhor: com a firme consciência de que reside no temor a Deus a origem da sabedoria.

Nascido em Capistrano, Ceará, há dezesseis anos representa o seu Torrão Natal na Academia de Letras dos municípios do Estado do Ceará – ALMECE. Silogeu do qual é presidente desde 1996. E como tal, relevando a fadiga dos anos sem revelar o cansaço do dia-a-dia, dedica seu cotidiano integralmente à cultura cearense.

Sob o Prisma da Enganação (Momento V de SÍNTESE DE UM PENSAMENTO) o quinto de sua lavra, na verdade é um livro composto por uma coletânea de preciosas crônicas e primorosos pronunciamentos. Alguns, inéditos; outros já veiculados nos meios editoriais da Arcádia que preside e de algumas das muitas entidades culturais em que tem assento. Por assim dizer, uma obra que tem a fisionomia do autor e, como tal, merecedora de nossos melhores aplausos; posto que fora artesanalmente composta com o inconfundível estilo Lima Freitas: culto e elegante.

Há quem entenda os textos rebuscados e férteis em termos inusuais (especiosos para alguns) como uma premeditada intenção de impressionar, onde o desejo de exibir cultura está acima do intuito de transmitir conhecimento. O que evidentemente não é o caso de Lima Freitas neste livro. Por natureza: afeito aos adornos da fala e aos ornamentos da escrita, o autor em comento é antes de tudo um palmeado Retor Padrão da Academia Cearense de Retórica — ACERE. De modo que, se ele foge da linguagem coloquial (o que a princípio sugere afastar o leitor do escritor) é porque, praticamente todos os textos constantes deste tomo, foram concebidos com a pena das demandas acadêmicas, e, como tal, o público alvo é culto e exigente.

A propósito, com todo o respeito e admiração que tributo ao maior escritor argentino de todos os tempos, que posição eu devo ter ante um Borges “orgulhoso de nunca ter escrito uma palavra difícil que levasse o leitor ao dicionário”; senão questionar: é ou não é um dos propósitos do leitor, o enriquecimento do próprio vocabulário?

De forma que vejo este livro de Lima Freitas como uma obra que os sábios leitores e a provecta e sisuda crítica saberão dar-lhe o merecido valor. Siga, pois, caro Lima Freitas sem se importar com o tempo, o seu dia-a-dia de completa dedicação à cultura e em especial às letras. Pois, esteja certo de que os doces frutos que as gerações futuras colherão, no mínimo, neutralizarão o amargo que hoje se experimenta ao semear cultura em tão inóspito e árido solo.


terça-feira, 11 de outubro de 2011

                        (Foto de Francisco Viana, jornal O POVO) 

                                    Sânzio de Azevedo de Gaveta


Por Pedro Salgueiro
Conheço Sânzio de Azevedo desde a década de 90 do século passado. Vi-o pela primeira vez no lançamento do livro Moreira Campos em quadrinhos, organizado pelo mestre Geraldo Jesuíno, no salão nobre da reitoria da UFC. Trocamos conversas e livros e vamos construindo uma amizade que espero seja para sempre.
Tenho aprendido muito com este que considero o "maior conhecedor da literatura cearense e arredores", e nos falamos quase todos os dias, não só de literatura, mas sobre quase tudo; só temos evitado falar ultimamente de política, devido a já termos discutido feio algumas vezes, mas nada que alguns dias de silêncio não tenham curado.

Difícil conversar com ele e não ouvir algumas expressões bem “suas”: “Cortar a casaca da humanidade”, “A puridade”, “Mandraque” e tantas outras, que sempre saem de sua boca acompanhada de uma gargalhada meio contida porém sincera.

Palestrante sem igual, discorre sobre seus assuntos preferidos com segurança, mas principalmente com um humor bem característico e, acima de tudo, inteligente.

De tanto se destacar como historiador e crítico literário foi restando quase desconhecido como poeta e contista, gêneros que vai levando de forma subterrânea e constante pela vida afora.

Três livros de poesias editados e um volume de contos inéditos (alguns já publicados em revistas e suplementos) passam quase desapercebidos até mesmo dos amigos mais próximos.

Em homenagem a esse “Sânzio de Azevedo de gaveta” quero apresentar a vocês o poema dele de que mais gosto (outro dia trago um conto):


SONETO I

O papagaio traz no bico a sorte
do transeunte da cidade grande;
dragões de ferro andam semeando a morte
mas o realejo em música se expande.
Fanhoso, ele renasce a velha valsa
que sobe com o barulho da avenida.
Juntas as duas se afigura falsa
alguma delas na manhã perdida...
Saias-balão, casacas e cartolas
misturam-se aos “blue-jeans” e minissaias;
gemem sirenas, rangem grafonolas,
cresce o edifício em meio às samambaias.
        Rugem motores de hoje antigamente
        ou cantam flautas de ontem no presente?

                 Sânzio de Azevedo. Cantos da Antevéspera (1999).


O SEGUNDO PENSAMENTO
(Poesia e Prosa)

Por Silas Falcão

De porteira aberta e com muito empenho, acolhi os exemplares do Sertanejo, Oh!xente, livro de estria do conterrâneo Edmilson Providência. Há anos não reencontrava o Edmilson, mas a literatura tem magias, ímãs e facetas benévolas. Após o lançamento, no Teatro Rosa Moraes, dos livros Açucena não é flor que se cheire; Histórias de roça: ciranda, cirandinha, venham monstros cirandar, respectivamente de Lourival Mourão Veras e Elias de França, estávamos eu, Pedro Salgueiro, Bernivaldo Carneiro e Luciano Bonfim numa pizzaria vizinha à Praça da Matriz de Crateús, quando Edmilson ressurge de um passado distante, nos cumprimentando.Rapidamente literatura e livros pertenceram ao cardápio. E nos convidou: “brevemente lançarei meu livro”. E hoje estou lançando o meu Oh! xente ao interpretar e não julgar as poesias e prosas do amigo Edmilson, sempre empilhando nas ancoretas da sua alma novas providências.
Livro à mão e sentindo o cheiro de papel novo, inicialmente desempenhei uma panorâmica. Li os títulos dos capítulos e dos textos. Sobrevoei capa e contracapa. Levitei segundos em alguns parágrafos e frases e ouvi rapidamente as faixas do CD. Todo este “aéreo” foi para sentir o livro e me aproximar mentalmente do poeta. Passo a passo comecei a leitura/viagem me sentindo em casa de minha antiga morada, sob um arejado alpendre com redes estendidas, ouvindo o balançar das conversas de ganhos e perdas, e causos de secas e invernos no sertão.  
Não serei júri literário, pois tenho muito, muito que aprender sobre literatura e produção textual, mas elaborarei, prazerosamente, o meu ato de interpretação em parágrafos que serão os meus capítulos. Mas antes, o meu isto: uma realidade jamais será linearmente julgada a partir de duas pessoas. Sempre me conduzo com a verdade de que não vemos a vida como ela é, mas como somos. Não li o livro, mas comentários sobre Obra aberta (1962), de Umberto Eco que observa: “o autor escreve, mas não termina porque o leitor é coadjuvante na elaboração do livro”. Quando lemos um livro, o conteúdo da interpretação – a segunda elaboração – será consequência da visão de mundo do leitor, neste caso eu. Interpretar uma produção literária de alguém é uma atitude mental distinta e cuidadosa, pois não falamos unicamente sobre a sua literatura, mas da percepção dele sobre a realidade – objeto da literatura –que o cerca e como ele manuseia as palavras na elaboração textual. Então, não interpretaremos somente o escritor, mas o conjunto pessoa/escrita.
Sertanejo, oh! xente” é a poesia anfitriã de oito estrofes alternadas em tercetos e quartetos com rimas dispersas. Ao longo da narrativa com diversidade de sons e movimentos – “balançando o juazeiro/no vento que vem e vai”; “terra... onde canta o patativa/bentivi e o azulão”; “Nessa terra... o forró é a toada...”, – Edmilson (re)canta o vigor do caráter, a obstinação e a esperança do nordestino mesmo sob as lâminas da seca ceifando cores e texturas da paisagem, matam o açude, o verde, as sombras, mas nunca “...a fonte do saber/...o coração.../cheio de amor e de carinho/e de cultura popular”. Esta secular decisão do nordestino em superar lágrimas e espinhos pulverizados pela seca esfomeada, me lança a esta frase que li por aí: “O sol que derrete a cera é o mesmo que seca a argila”.
 Lamento da natureza” é um canto cinzento como a última hora da tarde de domingo em que as alegrias se despedem. Contra a progressiva chacina da natureza, o poeta denuncia os algozes: “...criaturas decadentes/pelo poder da opressão/construindo suas armas/pra fazer destruição/de uma beleza transmutada/após anos de evolução”. Esta poesia reacendeu uma frase autoral que expus em 1981, no Campus da Unifor, enfileirando-se a dezenas de frases universitárias: “a natureza grita a dor da morte. Onde estão as lágrimas dos homens?” Nesta época eu estava de passagem por meus 24 anos, tinha mais sonhos e no mundo existia mais oxigênio. E percebendo as reais possibilidades da autodestruição da humanidade que o poeta Edmilson se revolta com a transformação do oxigênio – a natureza – em carvão.
Boêmia e literatura são como a noite, a lua e as estrelas: indissociáveis e mantêm distância da racionalidade. O boêmio de régua (Edmilson) Providência, em “Tributo a Nelson Gonçalves”, lembra-nos um dos expressivos interpretes da alma boêmia brasileira e lhe dedica eternidade quando poetiza: “seu coração/parou, pois chegou seu dia/mas sua melodia/não morreu...”. Nós boêmios sempre teremos elegantes e educados pensamentos apontados para Nelson Gonçalves.
O olhar crateuense do autor de Coração de Poeta, homenagem ao Dr. João, o recuperador de corações, se expande entre confetes e serpentinas nas poesias “Oh, Crateús”, “Maravilha e Carreteiros”, “Carnaval 2001”, “Carnaval 2004” e “Crateús, terra da alegria”. As dezoito páginas finalizam o capítulo Música, e cantam Crateús enobrecida por sua cultura, literatura, pelas referências culturais de Lucas Evangelista, Mestre Batista, D’Almeida, a teatrólogo Socorrinha, professora Neide Nogueira e os destaques carnavalescos Tykerê, Mandacaru, Maracatu e os blocos alternativos.Os primeiros versos de “Crateús, Terra da Alegria”, reafirmam os desdobramentos poéticos do Edmilson: “Crateús, terra querida/Revestida de beleza/A grandeza do seu povo/Alegre por natureza/; As noites sempre festivas/Mostrando rara beleza/A grandeza do seu povo/Alegre por natureza.
No capítulo Poesias, mesmo o livro sendo poesia e prosa poética, com exceção de alguns anexos, percorri ruas imaginando quais seriam nossas reações diante da “Revolta do Lixo”. Criativo e consciente foi o poeta lançando a ideia da personificação do lixo observada nas ilustrações da página 61, onde deveria haver frases nos cartazes, enriquecendo a qualidade visual e de conteúdo da manifestação. Mas este detalhe não dissolve a proposta do autor que é despertar consciências de que lixo é uma consequência da cadeia produtiva do capitalismo e que sua permanência pública é uma suja criação da nossa irresponsabilidade. 
Inesquecíveis são as frases imbricadas harmoniosamente à nossa estrutura mental, alongando nossos pensamentos. Uma destas é de Victor Hugo: “a alma da terra passa para o homem”. Nos dias iniciais de setembro eu e amigos estávamos numa Fazenda participando dos 83 do pai de outro amigo. Homenageando o aniversariante, uma cantoria com Louro Branco e Zé Cardoso se espalhou no terreiro ganhando o infinito da noite no galope do vento. Da mesa sob as estrelas, observei as paisagens humanas nativas dos lugarejos adjacentes. E olhando olhares, sorrisos e andares, recordei essa frase. As pessoas traziam nas alegrias, nas gesticulações, nas palavras, no andar, nos olhos e roupas a alma da terra em que nasceram e vivem. A poesia “Fortaleza” ratifica o enraizamento humano à terra da sua existência, do seu cotidiano, dos amigos e da sua família. Edmilson, em visita à Fortaleza, se indispôs com a imagem urbana ao ver “gente correndo pra todo lado... Mas pra que tanta correria/se o tempo não volta atrás”.
Colho dos filtros mentais do Edmilson um apadrinhamento de fogueira com a homenagem a quem verdadeiramente merece, tornando pública a identidade cultural, moral, filantrópica dos homenageados. E honrar a literatura eternizando pessoas e suas atitudes humanas neste livro é uma opção digna e justa com aqueles que fazem de sua passagem neste planeta passos de valorização da vida para com o próximo, a exemplo de D. Delite , D. Rosa Moraes e Seu Ferreirinha.

A leitura final começa nos Anexos, capítulo ordenado de crônicas em 3ª pessoa, excetuando-se o anexo 13, do Grande Heitor Maravilha, em que ele – 1ª pessoa – narra a origem do bloco alternativo Maravilha e Carreteiros. O final deste meu ato de interpretação será honrado com as presenças das pessoas que desenvolveram a educação e a cultura de nossa cidade. Inicio com a bela crônica – anexo 3 – Ferreirinha, o humanista, do poeta Lourival Mourão Veras. Li a primeira vez no blog da Academia de Letras de Crateús – ALC – e reli vezes observando o seu agradabilíssimo estilo literário. Mas antes, o que é cidade?  Conceito de Lana Cavalcanti: “Cidade é uma aglomeração de pessoas (habitantes, visitantes) e de objetos (edifícios, casas, ruas). Em função dessas pessoas e desses objetos os espaços e a vida urbana se organizam. Tendo isso em mente, podemos estudar a cidade como uma paisagem de objetos, sons, odores, pessoas e seus movimentos”. Mas o meu objetivo é ver/sentir a cidade como um lugar em que as pessoas produzem cotidianamente VIDAS. Como um lugar da familiaridade, afetividade, conectividade, diversidade. Superior a hierarquias de conceitos, cidade são PESSOAS. São elas que constroem, esculpem a paisagem humana da cidade. E o poeta Edmilson aplicou a acuidade habitando seu livro com pessoas que criaram e desenvolveram portfólios culturais e humanísticos em Crateús. E uma destas é Ferreirinha. Nonagenário Senhor de muitas leituras, memorialista da história de Crateús, cronista, radialista, militante partidário. Noberto Ferreira Filho, imortal da cadeira nº 1 da ALC, é nome de Biblioteca em Crateús. Menino eu ouvia falar do Ferreirinha comunista. Dele implantaram-me grandes medos como mais um papa-criançinhas que a Igreja e a ditadura militar inventaram. Hoje o amedrontamento cedeu à admiração a um HOMEM de caráter que tem amor a vida e as pessoas.

Anexo 4 de recordações.  Contemplações. Agradecimentos. Reverências vitalícias a uma das maiores educadoras de Crateús e do Ceará: Maria Delite Menezes Teixeira. A Dona Delite. A nossa mente pratica memórias voluntárias e involuntárias. Ler Dona Delite, involuntariamente me ocorre o inesquecível e pioneiro Externato, honra e glória da nossa cidade e da Rua da Cruz, espaço da minha infância e adolescência. Recentemente li no blog da ALC a bela crônica “Uma fábrica de sonho”, do poeta Raimundo Cândido, filho Dela. Aquecia Crateús o sol do meio-dia acompanhando centenas de estudantes para único destino: Externato Nossa Senhora de Fátima. Lembro-me das fileiras de alunos aguardando o chamado do sino para entrar na maravilhosa Fábrica e trabalhar os sonhos. Como todos os sonhos valorosos, estes não eram fáceis de realizar. Muita aplicação na tabuada. Leituras e leituras do insultante e volumoso Livro de Admissão. Todos os erros de aprendizagem e de comportamento, para não macularem a fabricação, a realização dos sonhos e o funcionamento da Fábrica, eram castigados com palmatória e/ou com permanência em sala de aula ao termino desta. Sofri os dois, muitas vezes sentindo as garras da fome arranhando a lousa do meu estômago. Externato Nossa Senhora de Fátima de onde sempre escuto as vozes adolescentes trabalhando! Quando em Crateús, visito a Fábrica dos meus primeiros sonhos. No http://www.crateus.ce.gov.br/ ouviremos a riquíssima entrevista de Dona Delite, dialogando com lucidez de juventude. Hoje, 11 de outubro, foram postados no site 479 comentários dos ex-alunos espalhados pelo Brasil. E todos são unânimes que a Grande Mestra seja homenageada com o Título de Cidadã, que será concedido no dia 14 deste mês, na Câmara Municipal de Crateús. Dona Delite MERECE. E sempre será amada pelos crateuenses.
Outra riqueza humana, no anexo 5: Rosa Moraes. Reincidência da memória involuntária: Colégio Pio XII. Anos 1970. Os alunos esperavam em frente ao velho portão. Sob as frias manhãs na Rua Firmino Rosa, uma respeitável Rosa alta, volumosa, caminhava em direção ao estreito portão de ferro que se abria a Sua passagem. Rosa Ferreira de Moraes fez este percurso por 37 anos. Fui aluno Dela. Também de artes plásticas, mesmo por algumas horas/aulas. Recordo um dia em que Ela convidou o Dr. Sales para narrar suas conquistas de vida. A plateia de jovens se despindo da adolescência ouvia imóvel a voz experiente, elegante e vitoriosa. Certamente a Professora queria nos dizer, por uma testemunha respeitável, que a vida é possível. Quando o volumoso som do sino anunciava a última aula do semestre, Ela abraçava fortemente cada aluno, sem distinção de molecagem ou inteligência. Julho deste ano, eu estava no Teatro Rosa Moraes para posse de novos acadêmicos. Deram-me, pela sequência de propostas enviadas a secretaria da Academia de Letras de Crateús, a cadeira nº 23. Convidei o saudoso e grande cronista Milton Dias para sentar-se como meu patrono. Nunca esquecerei esse momento. Abro um parêntese para agradecer ao poeta/irmão Raimundo Cândido Filho, que apadrinhou minha indicação e todos os acadêmicos. Pois bem. Dos anos 1970 a 2011, luas olhei, sorrisos encontrei, abraços inaugurais e finais pratiquei, pores de sol contemplei, objetividades espantei. E a Rosa? Nunca mais A vi. Quando a cerimonialista da ALC iniciou o final da solenidade, uma Bela paisagem humana cintilou entre o público.  Reolhei. Era a Rosa. Nonagenária. Não duvidei e comandei ordens ao meu lirismo: foto. Sempre retorno à fotografia. A Professora Rosa Moraes ao meu lado, olhando para as lentes do fotógrafo. Para mim. E eu para Ela.

Anexo 7: Manoel Picolé. Eu criança o vi saindo da sua casa, em frente ao cemitério, com o seu original bloco Às de Espada. Manoel Picolé é o morto ressuscitado pelo Edmilson.  

Rio Poti na página 135. Neste anexo, do memorizador dos fatos e pessoas da nossa terra Flávio Machado, eu nadarei um pouco.Trago em minhas memórias voluntárias, as águas deste Rio da década de 1970. O inverno teimoso alongava a sua trajetória em direção às residências da Rua da Cruz e aos medos humanos. Criança indiferente aos truques do rio, eu mergulhava em suas águas barrentas. O tempo escorreu. E sempre encontramos novas maneiras de errar. Hoje, o Rio da minha infância arqueja como sobrevivente de uma seca gorda, de uma tortura cruel. Vai-se evaporando pela ação do crescimento da cidade e da mesquinhez do progresso. Meu Rio Poti! Da década de 1970!      

No desenvolvimento do meu ato de interpretação, me senti personagem oculta de várias poesias, músicas, prosas e anexos. Por este motivo me espichei na maioria dos meus capítulos, sempre metendo o bedelho do meu passado. Tentei criar cercados aos meus pensamentos e atitudes para que eu me restringisse somente a alguns textos da escrita social, política e literária do poeta. Mas foi impossível porque Edmilson não lançou um livro, mas o livro das memórias crateuenses e familiares, estas evidenciadas nas prosas “Minhas folhas”, dedicada as filhas Lívia e Laís, e “Tome uma Providência, uma relembrança (etílica) de quando ele produzia aguardente de cana na fazenda Zeca Lopes. Sertanejo oh! Xente não é um livro impecável. Apresenta algumas falhas técnicas – o sertanejo na capa poderia ser substituído pela imagem do chapéu que está no CD. Ficaria mais subjetiva e com mais arte – e de estruturas textuais. Mas esses ciscos JAMAIS apagarão o autor e sua obra. Após a leitura do livro reouvi o CD. E como a música soma qualidades ao que se escreve!  Das oito faixas, me agradou muito Sertanejo oh! xente, Mulher, Tributo à Nelson Gonçalves e Oh, Crateús.

Livro fechado. Cervejinha ao lado, e no balanço da minha rede – literalmente em minha casa – fiquei matutando a vida e as pessoas. Todo dia lemos as pluralidades do mundo e seus elementos acrescentados. E registramos pessoas sem a consciência de que a vida é acolhimento. Acolhimento de atitude de paz. Acolhimento do sorriso amigo. Acolhimento da boa razão. Acolhimento do erro cometido. Acolhimento das leituras renovando as qualidades das nossas emoções, pensamentos e nossas vidas. Acolhimento do conselho justo e perfeito. Acolhimento das verdades que nos tornam mais humanos e mais válidos. Acolhimento da prudência. Acolhimento da paciência. Acolhimento da flexibilidade. Acolhimento da sensibilidade. A VIDA É ACOLHIMENTO. E rematutei Edmilson: enquanto milhões de seres (h)umanos divulgam/praticam a violência, a morte, o sangue e a dor, ou seja, o desacolhimento, o Edmilson compartilha com o público os seus acolhimentos de saudades, acolhimentos de justiça, união, paz. Acolhimentos de valorização do ser humano. O poeta nos presenteou ACOLHIMENTOS enfeixados nas 140 páginas do seu livro. Incluo os Anexos, mesmo não sendo autorais, que são acolhimentos– centenário de Crateús, Carnafolia, Mestre Lucas Evangelista, Maria do Socorro Malveira Silveira, Tikerê, João Martins de Sousa Torres – escritos por autores diversos.

Um amigo criou Meus livros dos outros, blog de resenhas. Desnecessário falar que meus livros dos outros são seus empáticos literários. Devemos considerar Sertanejo, oh! xente, pelo que ele representa de memórias, homenagens e fonte de pesquisas de algumas linguagens culturais de Crateús, como Nosso livro do Edmilson.

O título O Segundo pensamento surgiu desta verdade: literatura não é reprodução da realidade, mas um comentário, uma postura, um ponto de vista do autor do que ele observa ao redor. Reinterpretar literariamente essa realidade exigirá a mediação do autor – o observante – que usará outras argumentações, que é o segundo pensamento.

Final de leitura que iniciei sem saber que estaria numa espécie de caça ao tesouro. E nos mapas de pessoas, amigos, saudades, lugares, depoimentos, carnavais  
Encontrei-me. 

segunda-feira, 10 de outubro de 2011


             A rede

Carlos Nóbrega

E pende a rede do armador
embrulhada sobre si
fruta farta furta-cor
como um fardo de sonhar,
uma jaca de dormir.



 

sexta-feira, 7 de outubro de 2011


                                 Escritor Cotonete

Por Pedro Salgueiro

Um dos fatos que me fazem acreditar que estou ficando irremediavelmente mais velho é a quantidade de jovens escritores que me pedem para ler seus originais de livros e, claro, para dar minha modesta opinião sobre suas criações literárias. No início estranhava um pouco, dava a desculpa de que não era especialista nem nada, que mal sabia avaliar os meus minguados continhos etc. e tal. Mas com a insistência dos jovens colegas de ofício fui que fui aceitando ler e avaliar e meter o bedelho em algumas coisitas que achava de mau gosto ou fora do lugar, mas sempre com o pé atrás: afinal, quem sou eu para julgar uma pretensa obra de arte? Sequer fiz uma faculdade de Letras, sou um autodidata em tudo na vida, minha leituras são por demais anárquicas e só obedecem aos meus gostos pessoais. E além do mais sei, por experiência própria, que todo mundo é um pouco vaidoso e que no fundo não aceita bem uma interferência externa, principalmente se for negativa, mesmo que a procure.

Junte-se a isso tudo a minha total falta de jeito para análises e vereditos, para desenvolver um texto opinativo sobre quaisquer assuntos, também devido ao meu despreparo teórico sobre vários e variados assuntos, pois fui sempre muito intuitivo, aprendendo as técnicas e conceitos mais por sensibilidade que pela razão, e na maioria das vezes a fórceps. Sou daqueles músicos que apenas tocam de ouvido, que sequer sabem ler uma partitura.

E o que é mais grave: como julgar trabalhos de pessoas que estão apenas, muitas vezes, engatinhando nessa árida estrada do fazer literário, se eu mesmo, já dobrando a casa dos 40, a cada dia aprendo coisas novas (até mesmo com autores bem mais jovens e aparentemente iniciantes) e sou também inseguro quanto aos caminhos que sigo em meus parcos escritos? E como não melindrar (e desestimular) uma jovem promessa literária com julgamentos taxativos e/ou autoritários? Uma arte que se vai aprendendo aos poucos, com muito diálogo, confiança e sinceridade. Não aprendi ainda e acho que nunca vou conseguir, visto que todas as pessoas são diferentes e têm reações diversas, formações múltiplas, objetivos diferenciados e, obviamente, sensibilidades únicas. Encontramos escritores jovens completamente receptivos a sugestões e críticas, mas também outros bastante seguros de suas qualidades (e raramente de suas limitações). O jeito que encontrei foi ir caminhando junto deles, sugerindo que mostrassem para outros leitores (e não apenas os especialistas, pessoas comuns mesmo), que fossem mudando passagens e lendo em voz alta e podando adjetivos, principalmente irem aos poucos aprendendo com outros autores, vendo o que os mestres acharam como soluções para tais e quais dúvidas.

Não é uma tarefa fácil, exige tempo, disposição, conhecimento, mas fundamentalmente uma sensibilidade danada, pois afinal estamos tratando com jovens talentosos, muitos deles que logo, logo estarão (se tiverem força e persistência) nos ultrapassando de longe com belas obras literárias.

Como tenho mesmo muitas dificuldades para análises e conclusões fui preferindo escrever, quando muito, uma “orelha”, daquelas que cabe numa só aba (à esquerda), sugerindo ao autor deixar a segunda para sua própria foto e uma breve biografia.

Se penso que o livro não está ainda pronto para uma publicação, se acredito sinceramente que o autor pode melhorá-lo com boas revisões, substituições de algumas peças ou trechos, falo isso impreterivelmente em particular com ele, jamais o faria em público ou aceitaria escrever um texto expondo tais limitações. Acho que aceitar escrever, a pedido, sobre um autor e “sentar a lenha” ou mesmo fazer restrições veladas e cínicas é de uma descortesia absurda, uma desonestidade intelectual danada.

Então brinco comigo mesmo dizendo que estou me sentindo um verdadeiro “escritor cotonete”, tantas são as “orelhas” que tenho escrito ultimamente, fato que tem me assustado e me levado a essa preocupada divagação sobre a velhice.

P.S (1).: Queria também dizer que me sinto extremamente feliz quando encontro um jovem e esperançoso escritor com seu livro inédito debaixo do braço e partindo para a cruel tarefa de tentar publicá-lo. Não sou, felizmente, daqueles escritores que querem ser os únicos escrevinhadores da face da terra, que se sentem extremamente ameaçados com o talento dos jovens. Também acredito piamente que um escritor se vai fazendo aos poucos, com erros e acertos, amadurecendo ao mesmo tempo em que vai vivendo. E que se ele não se tornar um gênio, mal algum causará à humanidade, tão cheia de coisas piores do que uma simples má obra literária.

P.S (2).: Ultimamente tenho recebido diversas piadas de escritores próximos que, através de “fogos amigos’’, afirmam ser eu apenas um mero distribuidor de elogios, que me falta coragem (eu diria mais: falta é talento mesmo) para uma análise mais profunda, vertical, crítica. Claro que concordo em gênero, número e grau, e o que é pior: pretendo continuar sendo assim, impressionista, superficial, e tenciono continuar passando a “mão na cabeça” dos escritores iniciantes. Aviso ainda aos jovens amigos pretendentes às glórias literárias que é bem mais seguro e eficaz procurar um crítico abalizado (sugiro os tais escritores que me alfinetam), que — mesmo tendo eles, como diz nosso jornalista Alan Neto, “aftas na alma” — irão mais fundo em suas resenhas profissionais. Queria dizer também para esses nobres e críticos colegas que se eu não gostar do livro simplesmente não aceito escrever sobre o mesmo, e que, sinceramente, não me dá prazer algum destilar venenos e indiretas, arrotar regras e conceitos (duvidosos em sua maioria) em cima de jovens escritores, mas prometo a esses gênios que se, nos próximos dias, algum incauto escritor mais jovem me procurar pedindo uma opinião, uma “orelha” ou mesmo uma apresentação, com o maior prazer o encaminharei a tão abalizados críticos, para que eles possam, do alto de suas sapiências e auto-suficiências, esquadrinhar com seus monumentais estiletes os imaturos manuscritos alheios.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011


                   Quando o Amor é de Graça VI: a Mãe Zena

Raymundo Netto para Vida & Arte de O POVO

Mãe só se tem uma. Esta minha, para piorar, é uma idealista. A dona Zenaide estudava no Liceu ao tempo em que também cursava o Normal. Professorinha, recebia a troco denadica, em própria casa, os pequenos aprendizes “mal das pernas”, sem descuidar-se de ajudar sua mãe na criação dos irmãos — eram nove —, de fazer quitutes para venda no bar do pai e de estudar madrugada afora. Assim, ingressou na Faculdade de Odontologia. Aluna exemplar, honesta até dizer chega — não mente nem a pau — e toda pela Fé: se acredita, seja no que for, não tem quem a segure!
Boa parte de vida, Zena dividiu o consultório dentário com a casa de seis filhos barulhentos. Entrávamos e saíamos dele — à noite, brincávamos na cadeira da dentista a subir e a descer no “pedalo” — com dúvidas escolares e/ou domésticas, arengas ou mesmo para auxílio dos deveres de casa, ao pé da parede. Muitas vezes, éramos chamados para segurar os queixos dos pacientes no incisivo (ou molar?) momento do vaivém da extração.
De nunca reclamar da vida e de sempre dizer a toda hora e a todo o momento “Agradeça! Agradeça!”, desconfiava-lhe de algum temor ou tristeza quando ela, do nada, passava a cantar em voz de cantora de rádio: “Eu vivo a vida cantando, ai lili, ai lili, ai lou/ Por isso sempre contente estou, o que passou, passou.../O mundo gira depressa e nessas voltas eu vou/ cantando a canção tão feliz que diz ai lili, ai lili, ai lou/ Por isso é que sempre contente estou... Ai lili, ai lili, ai lou”
Lembro-me dela amolegando uns “capitães” no almoço dos seis filhos, ou sentada conosco no meio da estrada — viajávamos muito —, em garagens tisnadas de graxa e cheirando a gasolina, distribuindo galinha assada guardada em potes de alumínio, fazendo sanduíches de carne de lata, comprando fazenda para a costureira tecer nossas roupas de festa, ou fazendo das contas para conseguir pagar a prestação da casa.
Conselheira do povo, era sempre procurada diante das confusões de vida alheia. Tinha ouvidos para todos, além de palavras acalentadoras acolchoadas do amor a pesar no peito. Pudesse, colocava de um mundo dentro de casa.
Entretanto, à mesa da cozinha, sede de minhas melhores memórias, ao puxarmos assuntos banais, levantava-se sem ter nem para quê. Dizíamos: “Mãe, eu nem terminei...”. Ela respondia “Essa conversa não vai levar a nada. Tenho o que fazer”. Sempre teve, até hoje. Não para nunca a nossa baixinha.
Uma noite, coitada, para que eu não fosse punido no dia seguinte por não ter cortado o meu cabelo — estudava no Colégio Militar — decidiu ela fazê-lo. Errou o corte. Fez um “buraco” que, rapidinho — e rindo muito —, preencheu tascando-me à cabeça, com cola branca, o cabelo caído na pia. E não é que deu certo? Milagre de mãe?
Dia, uma senhora lhe disse perceber-nos, os filhos, carentes — não havíamos assinado a “procuração” —, pois ela não era de nos carimbar de beijos. Ficou grilada. Falou sobre com os filhos. Nem ela nem o pai eram dados a manifestações de amor, como beijos ou abraços. Não sabia. Faziam outros tantos absurdos por nós, mas não beijavam.
Já casado, com filhas, uma tarde, sol pegando fogo, a vi chegar à calçada. Estranhei: meus pais não são de visitas. Nem entrou. Nas mãos, um saquinho com farofa feito de casa, encimado por papelzinho “Netto”, escrito com letra cursiva, da mais linda que já vi. “Preparei a SUA farofa e trouxe, pois não sei quando você vai em casa, né?”. E se foi, "Felicidades", no passo ligeiro de passarinho — pernas pequenas, voos inimagináveis —, tinha muita coisa para fazer. Sempre tem. Ai lili, ai liliiii, ai lou.

Para assistir a um emocionante vídeo, em 1984, de um show, cuja roteirista era Maria Carmen Barbosa, filha de Haroldo Barbosa, autor da versão da canção germânica “Lili (Hi Lili, Hi Lo)”, e em que a cantora Gal Costa, com ajuda da plateia, a canta, acesse: http://www.vagalume.com.br/trem-da-alegria/lili-hi-lili-hi-lo.html