quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Três Fortalezas

                              Carlos Nóbrega

Número um este sol
Como se fosse um fardo
Peso de brasa sim
Peso de brasa ao ombro.

Número dois este mar
Águas de quando sonho
Que fossem doces as ondas
Doces seriam os homens.

Número três esta luz
A cal caindo do céu
Como se fosse a cidade
Talhada em pedra de sal.



sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

FEITIO POÉTICO DE MEIA TIGELA



Cid Ottoni Bylaardt


É poeticamente demonstrável que uma meia tigela pode mais como continente de poesia do que uma tigela inteira. Na tigela inteira os poemas são totalizantes, unificantes, acabados e definidos; na outra tudo é meio: não há espaço para determinações conclusivas, os poemas se soltam, desgarram-se, ficam sempre pelo meio: meio assim, meio assado, meio dizendo, meio sugerindo, meio escondendo, mantendo a suspensão dos sentidos, preservando a intransitividade entre o fazer e seu objeto, a poesia. Assim, o que cabe na tigela deste poeta, posto que meia? Inicialmente, a fragmentação, a diversidade e a superposição de textos sugerem uma bagunça poética de gêneros, estilos e recursos. A impressão inicial vai sendo desfeita aos poucos, pela sedimentação de alguns traços que persistem, sem, entretanto, quebrar a expectativa de algo novo que sempre surge aos olhos do leitor. Ao final, bem ao final, o foguetório parece querer organizar o inorganizável. Talvez essa seção seja mais útil aos comentadores, analistas, prefaciadores etc. do que à própria poesia, que prescinde dela. Mas tem lá sua utilidade, sua guisa de roteiro.

      Um conjunto, o que alude à sapiência de Bashô, reúne haikais, epigramas, poemas curtinhos de bate-pronto à maneira leminskiana de saques, piques, toques & baques. Os Epiquilos parecem apontar para a solidão da existência, os fracassos, os planos desfeitos ou não-feitos, como sabê-los se não pudermos tê-los?, as dificuldades do coração, a condição do poeta de dejeto humano. Em As Musas Alheias comparecem as mulheres, as do cinema, predominantemente, mas também a marquesa, as mulheres dos romances, a mulher sensual. No Sonetódromo correm, evidentemente... os sonetos. As subversongs trazem paródias e paráfrases de textos de ícones musicais das últimas décadas: os Beatles (com direito ao passeio desengonçado dos quatro pela Abbey Road), os Rolling Stones, Paul Simon, Osbourne, Burdon, Morrisey etc. Em Conta-Gotas, algumas reflexões pontuais sobre a inutilidade dos anjos, as condenações e absolvições absurdas, a aniquilação da humanidade, a sapiência, as malícias não reveladas da igreja católica, até um estranho desenho de uma gota remendada ou um ovário portando um bizarro óvulo cibernético com anteninhas, mais fácil teria sido perguntar a uma criança, que importa o sentido? Em Oratório aparecem os textos de contrição, de devoção, coisas dos deuses cristãos, das nossas-senhoras, dos jesus-cristos, tudo bem alinhavado, rimado e ritmado, ladainha em procissão de bons sentimentos religiosos. Finalmente, sob a designação Profissão de Fé surgem os metapoemas que atestam a insuficiência e as lacunas da linguagem, sua incomunicabilidade, mas ao mesmo tempo não abrem mão das brincadeiras com as palavras, e procura deixá-las falar, encenando o jogo da poesia, signos lá e cá, sim, e mais: o sacrifício em que as palavras são as vítimas, além de mãozinhas dançantes e pinguinhos bruxuleantes.   

       Há aí formas reconhecíveis e anunciadas, como o haicai e o soneto, a ligar os textos ― com todas suas transgressões ― a uma tradição poética de centenários vários. E há também a forma não prevista, não planejada, em que as palavras se rebelam aos desejos do poeta e vão se desalinhando como podem. Há ainda as não-palavras, importantes na construção deste poetar, a compor a dança dos signos: os ícones, os desenhos, os esquemas gráficos com sentidos aparentes e inaparentes, difíceis de fixar o significado, de estabelecer o rumo, como todo jogo poético que possa levar este nome.

       Eis aí a meia tigela do poeta, a que nunca se encherá e jamais cessará de transbordar, buscando sempre instaurar, inaugurar, oferecer sentidos e não-sentidos, a trilhar um caminho de linguagem que não anuncia a chegada. E não chega.

(Prefácio do livro Girândola, do Poeta de Meia-Tigela)

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

"Receita para um Ano Bom", de Pedro Salgueiro para O POVO



                                           Pedro Salgueiro


Há mais de meio século tento (sem sucesso, claro!) uma fórmula competente para começar bem o ano novo. Desisti faz tempo das antigas listas de desejos, metas impossíveis e promessas mirabolantes, pois nunca cumpri razoavelmente nenhuma; poucos itens foram levados adiante – seja pela falta de forças, ou mesmo por culpa dos ventos (ou espumas) irregulares dos dias que nos surpreendem com novíssimas vontades, imposições prementes...

Entretanto vamos lá novamente arriscando renovar pelo menos as velhas esperanças... Tentarei (inutilmente, bem sei) cuidar um pouco mais da combalida saúde, diminuir uns bons quilos, regrar os excessos de bebidas e comidas e raivas; ler melhores livros, aqueles fundamentais que vamos deixando eternamente de lado tangidos que somos pela brisa fácil das novidades... 

Enfim, mais preocupações de pousos que de voos; de terra que de mar e ar – cousa da idade (ora direis!), que nos vai (ou seria se esvai?) apertando, encantoando-nos nessa antiquíssima sinuca de bico que chamamos simploriamente de velhice. 

Mas deixemos de coisas e cuidemos da vida (pois senão...), procuremos – ora, pois-pois! – as pérolas bem escondidas, aquelas raras, já que pouco tempo teremos pras banais... Porém tenham cuidado (e lá vou eu com os conselhos inúteis!), pois as mais valiosas se encontram frequentemente nos estercos da lida, pelos monturos das velhas amizades de infância, das paixões antigas, dos sonhos perdidos, daqueles medos evitados... 

E vamos, pouco a pouco, buscando desbravar menos os longínquos horizontes; entanto seria prudente cuidar mais do jardim e quintal; melhor tirar boas horas do dia para tanger os ventos que – roseanamente – redemoinham pelos terreiros; depois, então, sentar numa gasta cadeira que já foi do avô, simplesmente olhando, mais e mais, para as tortas unhas dos pés; enfim, espreitar menos espelhos... Fazer menos arrodeios! 

Contudo, se o leitor quiser mesmo começar melhor o ano novo, deve evitar principalmente ler velhos cronistas ranzinzas, desesperançados! Pule direto para os jovens otimistas, moços novidadeiros que adoram (como todos vós, não é mesmo!?) lustrar em público o limpo umbigo.